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Como a Coreia do Norte burla as sanções e recebe carga ilegal em alto-mar

29.dez.2017 - Navio Lighthouse Winmore, sob a bandeira de Hong Kong, nas águas de Yeosu, na Coreia do Sul. Barco é suspeito de violar sanções da ONU e levar petróleo para a Coreia do Norte - Hyung Min-woo/Yonhap via AP
29.dez.2017 - Navio Lighthouse Winmore, sob a bandeira de Hong Kong, nas águas de Yeosu, na Coreia do Sul. Barco é suspeito de violar sanções da ONU e levar petróleo para a Coreia do Norte Imagem: Hyung Min-woo/Yonhap via AP

Chris Horton, Steven Lee Myers e Michael Schwirtz

Em Kaohsiung (Taiwan)

19/01/2018 12h34

Dois navios se encontraram à luz do dia no meio do mar da China Oriental. Um deles era um navio-tanque de 11.253 toneladas, o Lighthouse Winmore, que supostamente rumava para Taiwan. O outro, um velho cargueiro, levava a bandeira vermelha, branca e azul da Coreia do Norte.

Em uma troca ilícita em alto-mar, captada em fotos tiradas por um avião-espião americano, o Lighthouse Winmore descarregou, segundo disseram autoridades mais tarde, 600 toneladas de petróleo no navio norte-coreano, violando as sanções da ONU.

Com as sanções que restringem seu comércio, inclusive a importação de petróleo refinado, a Coreia do Norte recorre cada vez mais aos carregamentos ilegais de petróleo para adquirir o combustível de que precisa, segundo autoridades diplomáticas e documentos obtidos por "The New York Times".

O tráfico em alto-mar tornou-se o que essas autoridades consideram uma subversão nociva das sanções. Embora seja difícil avaliar a frequência do contrabando, elas temem que esteja minando os esforços para conter o ambicioso programa de armas nucleares de Kim Jong-un, o líder norte-coreano, por meio de pressão econômica. O tráfico também tensionou as relações entre os EUA e os dois maiores parceiros comerciais da Coreia do Norte, China e Rússia.

No mês passado, os EUA tentaram convencer outros membros do Conselho de Segurança da ONU a incluir na lista negra dez navios que estariam praticando contrabando de petróleo e carvão. Além do Lighthouse Winmore, essa lista, obtida por "The New York Times", inclui quatro barcos de bandeira norte-coreana, além de outros ligados à Coreia do Sul, Hong Kong, Taiwan e China continental.

Um diplomata da ONU disse que as transferências estavam acontecendo com frequência no mar Amarelo, no mar da China Oriental e possivelmente no mar do Japão.

O diplomata, que falou sob a condição do anonimato por se tratar de material de inteligência, disse que detectar o contrabando foi difícil e que evitá-lo exigiria a interdição de navios suspeitos no mar, o que poderia inflamar as tensões com a Coreia do Norte.

Determinar quem apoia os norte-coreanos se mostrou uma tarefa difícil. A China e a Rússia foram acusadas pelo contrabando, ou, pelo menos, por deixar de reprimi-lo, embora haja poucas evidências de envolvimento direto dos governos.

Um dia antes de a Coreia do Sul anunciar, no mês passado, que havia apreendido o Lighthouse Winmore em novembro, o presidente Donald Trump pareceu envolver diretamente a China no contrabando, ao escrever no Twitter que o país tinha sido apanhado "de mão vermelha", permitindo entregas ilícitas à Coreia do Norte.

Rastrear a propriedade do Winmore e do contrabando salienta a dificuldade para identificar quem é cúmplice, apesar do que sugeriu o ataque do presidente.

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A maioria dos 25 tripulantes do Winmore era chinesa, mas outras conexões com a China foram mais tênues. Algumas ligações eram com lugares onde os EUA podem ser igualmente influentes.

A bandeira do navio mostrava que era de Hong Kong, que nas últimas duas décadas é uma região administrativa especial semiautônoma da China. O petróleo era originário de uma corretora multinacional de commodities, o Trafigura Group, e foi vendido primeiro para uma companhia de Hong Kong, depois para outra em Taiwan, a ilha que a China considera uma província rebelde e que mantém relações estreitas, mas não oficiais com os EUA.

O proprietário do navio parece ser uma empresa de Hong Kong cujo diretor vive em Guangzhou, na China. Mas o navio foi alugado por um magnata da pesca de Taiwan, Chen Shih-hsien, cuja companhia, a Billions Bunker Group, estava até o mês passado registrada nas ilhas Marshall, um país no oceano Pacífico que goza de proteção militar dos EUA.

A dificuldade aumentou devido à opacidade da indústria de navegação internacional, onde navios podem levar bandeira de países distantes e sua propriedade muitas vezes é oculta para limitar a responsabilidade legal.

Os norte-coreanos também se especializaram em cobrir seus rastros para escapar de sanções. Os números de identificação são forjados; os navios são registrados sob "bandeiras de conveniência" para mascarar sua origem; nomes e até cores da pintura são mudados frequentemente.

O último relatório de sanções enviado ao Conselho de Segurança da ONU, em setembro, advertia que "a aplicação branda do regime de sanções juntamente com a evolução das técnicas de evasão do país estão minando as metas das resoluções" destinadas a conter o desenvolvimento nuclear e de mísseis da Coreia do Norte.

A apreensão pela Coreia do Sul do Lighthouse Winmore em novembro só foi divulgada no final de dezembro, depois do post de Trump no Twitter. Dois dias depois, a Coreia do Sul revelou a apreensão de outro navio, o Koti, com bandeira panamenha e operado pela Harmonized Resources Shipping Management Co., de Hong Kong.

Segundo registros de empresas de Hong Kong, o dono da companhia é um indivíduo chamado Ma Guixian, e sua sede fica no porto chinês de Dalian, na margem oposta da baía onde fica a Coreia do Norte. O telefone da empresa foi desligado.

Depois que as apreensões foram divulgadas, o governo chinês recusou sugestões de que estivesse de alguma forma envolvido.

Conter o contrabando entre navios em alto-mar é complicado. A área suspeita é vasta e difícil de patrulhar. Encontrar contrabandistas entre as centenas de navios que carregam petróleo no mar é quase impossível. Tais transferências entre navios são legais se o receptor não for a Coreia do Norte.

Qualquer esforço de bloquear os portos norte-coreanos ou inspecionar navios com destino à Coreia do Norte suspeitos de carregar petróleo ilícito poderia ser considerado um ato de guerra por Kim e levar a uma nova escalada.

Determinar quanto petróleo ilícito está chegando à Coreia do Norte também é difícil, segundo especialistas. Antes de 2017, a Coreia do Norte importava aproximadamente 4,5 milhões de barris de petróleo refinado por ano, a maior parte da Rússia e da China. Uma resolução da ONU adotada no mês passado impôs um limite de 500 mil barris de petróleo refinado por ano. (A Coreia do Norte também pode importar anualmente 4 milhões de barris de petróleo cru, cuja maior parte sai da China por oleoduto.)

Autoridades ocidentais dizem que é improvável que a Coreia do Norte consiga contrabandear petróleo refinado suficiente para suprir a diferença.

As atividades de empresários como Chen estão se mostrando um salva-vidas, porém. Até agora as autoridades não disseram definitivamente se Chen é um pequeno contrabandista ou uma figura importante no negócio ilícito de petróleo. Ele foi citado por várias organizações noticiosas dizendo que não sabia que o petróleo transferido se destinava à Coreia do Norte. Ele não foi encontrado para dar declarações.

Nascido em 1965, Chen seguiu sua família na indústria de pesca comercial, tornando-se uma figura proeminente no negócio de atum como membro da Associação do Atum de Taiwan, sediada na cidade portuária de Kaoshiung, no sul.

Registros mostram que Chen também possuía dois navios, conhecidos como "bunker" [o tipo de combustível geralmente usado por navios], que servem para reabastecer no mar. Esses barcos, que são como postos de combustível flutuantes, são uma parte integral do sistema de navegação internacional, especialmente na indústria pesqueira, permitindo que os navios fiquem mais tempo ao largo. O Lighthouse Winmore, que ele alugou, também era um navio bunker.

Chen registrou uma nova empresa nas ilhas Marshall, o Billions Bunker Group, em 2014. As ilhas Marshall são um dos 20 países que têm laços diplomáticos oficiais com Taiwan. Segundo o registro corporativo local, a companhia foi extinta em 29 de dezembro, dia em que a Coreia do Sul divulgou a apreensão do Winmore.

A Billions Bunker registrou separadamente uma empresa chamada Taiwan Group Corp. nas ilhas Virgens Britânicas, criando uma rede complexa de holdings, incluindo outras que foram reveladas no vazamento dos Panama Papers, sobre a riqueza escondida em paraísos fiscais.

Promotores na Coreia do Sul disseram que a documentação do Lighthouse Winmore indicava que ele rumava para Taiwan quando partiu do porto sul-coreano de Yeosu, em 11 de outubro. Oito dias depois, um avião da inteligência naval dos EUA o fotografou aparentemente transferindo petróleo para o Sam Jong 2, segundo documentos apresentados ao Conselho de Segurança da ONU e vistos pelo "Times".

Os documentos incluíam fotos dos dois navios de propriedade da empresa de Chen: o Billions 18 e o Billions 88. Enquanto autoridades dizem que o Billions 18 esteve envolvido em contrabando, não há evidências suficientes para se dizer o mesmo sobre o Billions 88.

As autoridades de Taiwan detiveram Chen em 3 de janeiro, numa investigação que parece ter sido provocada pela apreensão na Coreia do Sul. Ele foi libertado sob fiança equivalente a US$ 50 mil (cerca de R$ 150 mil). Segundo um documento do promotor distrital de Kaoshiung, ele enfrenta acusações de falsificar documentos de exportação.

Ninguém atendeu à porta da casa de Chen em Tainan, cidade ao norte de Kaoshiung.

Desde que a Coreia do Sul entrou em ação, os nomes dos dois navios de Chen foram modificados, uma prática comum na indústria que torna mais difícil rastrear a propriedade dos mesmos. O Billions 18 se tornou Kingsway, ainda com bandeira do Panamá, e o Billions 88 virou Twins Bull, com bandeira de Palau, país-ilha no Pacífico, segundo o site Marine Traffic, que acompanha a navegação.

Em 12 de janeiro, o Ministério da Justiça de Taiwan anunciou sanções contra Chen, congelando seus bens e proibindo que outras pessoas os negociem.

O contrabando ligado à Coreia do Norte continuará difícil de erradicar, segundo autoridades e especialistas.

Conforme a Coreia do Norte enfrenta sanções comerciais mais duras, os que desejam contorná-las podem obter lucros ainda maiores. É por isso que os EUA e outros países tentaram pressionar a China e a Rússia a policiar as sanções de forma mais vigorosa. As autoridades dizem que elas demonstraram pouco interesse.

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