Cidade do México: a capital mais liberal da América Latina?

  • João Fellet - @joaofellet
  • Enviado especial da BBC Brasil à Cidade do México
Antes conhecida por ser 'violenta', hoje a Cidade do México é vista como 'tranquila' por moradores

Crédito, BBC Brasil

Legenda da foto, Antes conhecida por ser 'violenta', hoje a Cidade do México é vista como 'tranquila' por moradores

Em sua livraria no centro da Cidade do México, Jaime Hernández Campos lembra os anos em que a capital tinha fama de violenta entre seus compatriotas.

"A gente que vinha das províncias achava que aqui era perigoso. Hoje muitos se mudam para cá em busca de segurança", ele diz à BBC Brasil.

Campos, de 69 anos, testemunhou o inchaço da cidade entre as décadas de 1960 e 1980, quando a população dobrou com a chegada de migrantes que fugiam da pobreza no campo.

Com 21,2 milhões de habitantes, a região metropolitana da capital mexicana é hoje a maior área urbana do Hemisfério Ocidental (a Grande São Paulo, a segunda, tem 21 milhões).

Mesmo assim, a cidade - descrita como "pós-apocalíptica" pelo escritor local Carlos Monsiváis - tem proporcionalmente alguns dos mais baixos indicadores de violência do México.

Em 2014 houve ali 8,4 assassinatos para cada 100 mil habitantes, índice muito menor que os registrados em Estados assolados pelo narcotráfico - como Guerrero (42,7) e Sinaloa (33,3) - e no Brasil (29).

Entre outros fatores, atribui-se a relativa paz na capital mexicana a seu grande número de policiais, o que desencorajaria cartéis de drogas a operar abertamente por lá, e à recuperação de áreas degradadas.

Aborto e casamento gay

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Erguida sobre as ruínas de Tenochtitlán - uma das maiores cidades-estados americanas antes da invasão europeia -, a Cidade do México não se distinque de outras partes do país apenas pelos dados de violência.

Em 2007, a Assembleia Legislativa do Distrito Federal legalizou o aborto até 12 semanas de gravidez e, em 2010, passou a autorizar a celebração de casamentos gays. Em nenhuma outra área do México - país onde 76,5% da população se diz católica - gays podem se casar e mulheres podem abortar sem que sua gravidez seja de risco ou tenha sido gerada por estupro.

A Constituição mexicana dá às unidades federativas autonomia para legislar sobre vários temas, e a postura do Distrito Federal sobre casamentos gays e aborto reflete a tradição política da capital.

Desde que os moradores locais passaram a escolher seu chefe de governo (equivalente a prefeito), em 1997, todas as eleições na Cidade do México foram vencidas por um partido de esquerda, o Partido da Revolução Democrática (PRD).

A sigla é a segunda maior força política do país e principal adversária do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que comandou o México entre 1929 e 1989 e voltou ao poder em 2012 com a eleição do atual presidente, Enrique Peña Nieto.

Decadência e renascimento

Sentado à porta de sua livraria no distrito Roma, Jaime Campos diz que a Cidade do México deve muito de sua feição atual aos migrantes - nacionais e estrangeiros - que se aninharam ali a partir da metade do século passado.

"Aqui se concentra o pensamento de todas as regiões do país e de várias partes do mundo."

'A gente que vinha das províncias achava que aqui era perigoso', disse Jaime Hernández Campos

Crédito, BBC Brasil

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Durante o surto demográfico, conta ele, seu bairro e boa parte do centro da cidade se deterioraram e foram abandonados por ricos moradores que viviam em mansões em estilo europeu. Naquela época, afirma Campos, assaltos eram comuns na vizinhança.

Dos anos 1990 para cá, a região voltou a se valorizar. A localização central e o charme das construções atraíram artistas e estudantes, e atrás deles vieram galerias, cafés e restaurantes. Hoje, diz Campos, caminha-se tranquilo pelas ruas e raramente se tem notícia de algum crime.

O livreiro associa as posições moralmente liberais dos "chilangos" - como se chamam os nascidos na capital - à influência da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), que tem seu principal campus no sul da cidade.

Maior universidade da América Latina, com mais de 300 mil alunos (a USP, maior pública brasileira, tem 67 mil), a Unam já formou três prêmios Nobel - Octavio Paz (literatura), Anfonso García Robles (paz) e Mario Molina (química) - e é considerada um bastião da esquerda mexicana.

'Momento único na história'

Dos corredores da Unam saiu o escritor Emilio Lezama, diretor da revista digital cultural "Los Hijos de la Malinche". Nascido numa família "chilanga" de classe média alta, Lezama, de 28 anos, fez pós-graduação na Universidade Sorbonne, em Paris, e acaba de concluir um mestrado em Washington, nos Estados Unidos.

Ao contrário dos milhões de mexicanos que migraram para o país vizinho, ele diz que jamais pensou em ficar nos Estados Unidos e que regressará à sua cidade natal nas próximas semanas.

Lezama acredita que a Cidade do México é a 'capital progressista mais importante' da América Latina

Crédito, BBC Brasil

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"Há momentos na história em que certas cidades começam a efervescer, em que brotam oportunidades e movimentos - é para essa cidade que vou voltar."

Mesmo ao se abrir a influências estrangeiras, Lezama diz que a capital jamais se fechou às tradições nativas.

A valorização da cultura local se nota na imponência do Museu Nacional de Antropologia, que expõe arte indígena mexicana e é um dos mais visitados do país, e nas apresentações semanais do Balé Folclórico do México no Palácio de Belas Artes, a principal casa de espetáculos mexicana.

Ou ainda em fenômenos mais recentes, como o resgate do pulque, bebida fermentada milenar que quase sumiu do México e hoje se tornou popular entre universitários.

Resposta à tragédia

Lezama remonta o início da atual fase da Cidade do México a 1985, quando um terremoto matou milhares e pôs abaixo grande parte da capital.

Para responder à tragédia, os moradores tiveram de se organizar. "As pessoas saíram às ruas para ajudar e assumiram o controle da situação. Ali surge a sociedade civil no México", diz o escritor.

Segundo Lezama, ao se unir para reconstruí-la, os "chilangos" mudaram sua relação com a cidade, passando a cuidar mais dos espaços públicos.

Transporte público na Cidade do México é de baixo custo, e moradores são estimulados a deixar o carro em casa

Crédito, BBC Brasil

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Naquele momento se firmou, diz ele, a postura que norteia a gestão da cidade até hoje, e que tem no forte subsídio ao transporte público um de seus principais traços.

Uma passagem de metrô ou ônibus na Cidade do México custa menos do que R$ 1. E para estimular os moradores a deixar os carros em casa, a cidade vem expandindo seus corredores de ônibus e ciclovias. Hoje ciclistas pedalam nas principais vias da cidade a qualquer hora do dia.

Por todas essas características, Lezama diz acreditar que a Cidade do México é a "capital progressista mais importante" da América Latina.

E Montevidéu?

Para o jornalista, fotógrafo e guia de turismo brasileiro Caio Vilela, que já viajou a mais de 100 países, na América Latina talvez apenas a uruguaia Montevidéu seja tão liberal em costumes quanto a capital mexicana.

O Uruguai é o único país latino-americano onde o aborto e o casamento gay são permitidos, e em 2014 a nação se tornou a primeira da região a legalizar a produção da maconha. Na Cidade do México, legisladores discutem uma lei que liberaria o consumo recreativo da droga, mas ainda não há data para uma decisão.

Ainda assim, Vilela diz que comparar a Cidade do México com Montevidéu "é como comparar uma cidade do interior com Nova York".

"É muito mais fácil adotar posturas liberais numa cidade e num país pequenos do que numa cidade imensa e cheia de problemas", ele afirma. Com 3,4 milhões de habitantes, o Uruguai todo tem uma fração da população da capital mexicana.

Mortes por poluição

A Cidade do México não está, porém, imune aos problemas que afetam o resto do país e grande parte da América Latina. Ricos e pobres vivem apartados, e moradores afirmam que os serviços públicos pioram conforme se afasta do centro da cidade.

Embora a qualidade do ar na cidade tenha melhorado nos últimos anos, organizações locais calculam que doenças respiratórias agravadas pela poluição matem sete moradores por dia.

Nos horários de pico, motoristas presos em congestionamentos buzinam, enquanto ambulantes vendem jornais populares com fotos de corpos dilacerados por acidentes ou disparos, em crimes normalmente na periferia.

Qualidade do ar na Cidade do México é causadora de doenças respiratórias na população

Crédito, BBC Brasil

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No centro da cidade, longas fileiras de policiais com escudos circulam sempre prontos a intervir em protestos.

Numa quarta-feira no fim de maio, alguns agentes observavam um acampamento de professores erguido há um ano na praça do Monumento à Revolução Mexicana.

Os manifestantes - algumas centenas, segundo os organizadores - se instalaram ali para protestar contra a reforma educacional levada a cabo pelo presidente Peña Nieto. O protesto ganhou força com a morte em 2014 de 43 estudantes que planejavam uma manifestação em Ayotzinapa, no Estado Guerrero.

Acredita-se que autoridades locais pediram que a polícia entregasse os jovens para narcotraficantes, que teriam lhes matado.

Um grupo de professores disse à BBC Brasil que continuará a ocupar a praça até que o presidente recue da reforma e o sumiço dos estudantes seja esclarecido.

O caso mostra que, apesar da singularidade da Cidade do México e de sua relativa autonomia, o destino da capital está atrelado ao do resto do país.